Madame Satã: conheça a história do mítico malandro da Lapa, cujo túmulo em Ilha Grande pode ser o 1º tombamento LGBTQIA+ do país
Túmulo de Madame Satã no RJ pode ser o primeiro patrimônio LGBTQIA+ tombado pelo Iphan O túmulo de João Francisco dos Santos, conhecido como Madame Satã, ...

Túmulo de Madame Satã no RJ pode ser o primeiro patrimônio LGBTQIA+ tombado pelo Iphan O túmulo de João Francisco dos Santos, conhecido como Madame Satã, pode se tornar o primeiro patrimônio LGBTQIA+ tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). O corpo do artista, que marcou a boêmia da Lapa no século passado, está sepultado no cemitério da Vila do Abraão, na Ilha Grande, em Angra dos Reis, na Costa Verde do Rio. O pedido de tombamento foi feito pelo pesquisador Baltazar de Almeida, que considera a iniciativa um passo importante para reduzir o apagamento histórico de figuras ligadas ao movimento no Brasil. Morador de Angra dos Reis, Baltazar de Almeida descobriu a ligação de Madame Satã com o território enquanto fazia pesquisas para um roteiro turístico desenvolvido para a startup que está lançando. Ativista do movimento negro e LGBTQIA+, ele cursa Turismo na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), na modalidade de ensino à distância. 📱Baixe o app do g1 para ver notícias do RJ em tempo real e de graça “A questão do resgate de memória me encanta muito, esse saber e voltar ao passado. Então eu juntei Madame Satã, Ilha Grande, o corpo que ainda não foi exumado e fui montando esse argumento para o Iphan”, explica Baltazar. “Para mim, Baltazar, é honrar uma história de uma pessoa que hoje parece ser próxima a mim, mas eu nem conheci. Eu sou de religião de matrizes africanas e acho que vem daí esse sentimento, tenho uma malandragem muito forte na minha linha e sinto essa conexão”, afirma. Túmulo de Madame Satã fica em Ilha Grande, no RJ Reprodução/Mayron Carvalho De Souza Para formalizar o pedido, Baltazar realizou uma ampla pesquisa sobre a vida e importância cultural de Madame Satã. A solicitação foi aceita, e o Iphan já iniciou os estudos técnicos no local. O processo de tombamento envolve várias etapas e pode durar até 5 anos. Uma primeira visita ao túmulo já foi feita por técnicos do instituto. "A instrução de tombamento é um procedimento longo e criterioso, que envolve a elaboração de estudos técnicos, emissão de pareceres, realização de consulta pública e, por fim, a votação pelo Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, órgão colegiado de decisão máxima do Iphan para assuntos relacionados ao patrimônio cultural material e imaterial", explicou o instituto em nota. Na internet, um abaixo-assinado já reúne mais de 800 assinaturas em apoio ao pedido de tombamento. Para o pesquisador, a ausência de qualquer bem ligado à história LGBTQIA+ reconhecido oficialmente no Brasil é resultado de uma herança da homofobia. “Algumas histórias são lembradas e outras esquecidas ou apagadas. E quem são essas histórias que geralmente são nomes de rua, nomes de patrimônio e quais são as histórias que não têm esse local?”, questiona Baltazar. Em paralelo ao pedido de tombamento, o pesquisador protocolou outro requerimento: que o Iphan crie um departamento específico para o tombamento de patrimônios ligados à causa LGBTQIA+. A proposta prevê identificar bens já reconhecidos que tenham relação com a comunidade e também categorizar futuros locais a serem tombados. “Sem isso, se continuar não tendo, a história LGBT desse bem vai ser totalmente apagada ou diluída. Então a gente nunca vai ter dentro da história do país um patrimônio LGBT?”, aponta o pesquisador. De João Francisco dos Santos à Madame Satã João Francisco dos Santos nasceu em Pernambuco e dizia ter sido trocado pela mãe por uma égua. Segundo o pesquisador, é preciso considerar o contexto social daquela época para compreender quem era João Francisco antes de se tornar Madame Satã. “O pai dele era filho de uma escrava com um senhor branco, então a família dele tinha direito, de certa forma, de usar aquelas terras. A situação muda quando o pai dele morre, e a família é expulsa do local. Foi uma mulher que ficou sozinha com muitos filhos”, conta Baltazar. A proposta veio de um homem que se dizia impressionado com a esperteza do menino, então com 7 anos, e prometeu oferecer estabilidade e educação — mas a realidade acabou sendo bem diferente. “Madame Satã vira praticamente uma pessoa escravizada nessa época, sem folga, sem nada, para cuidar dos cavalos desse senhor. Em uma dessas viagens de entrega de mercadoria, ele conhece uma mulher que tem uma pensão. Ela ia fechar essa pensão para abrir outra no Rio e propõe pra ele fugir com ela”, conta o pesquisador. Madame Satã Walter Firmo “E aí João Francisco foge com essa mulher e vem parar na Lapa, e mais uma vez Madame Satã é escravizada nessa pensão e em algum momento decide fugir disso e vai morar na rua”, acrescenta. A partir desse momento, começa a surgir a figura de Madame Satã — uma personagem que, segundo o pesquisador, era boa demais para não ganhar destaque nos jornais. Ainda como João Francisco, ele aprende capoeira e conhece boêmios na Lapa. “Ele aprendeu a capoeira com o malandro Sete Coroas. Então, ele se torna capoeirista ali com os malandros da Lapa e se torna um deles muito respeitado, mas brigão também, muito para defender os seus”, explica. “Madame Satã era uma pessoa preta e abertamente homossexual, então tinha muito preconceito, e ele se envolve em diversas brigas com policiais, que sempre queriam prender Madame Satã, e assim se cria a lenda do temido Madame Satã na Lapa”, conta Baltazar. É nessa época que João Francisco passa a se travestir de mulher e se apresentar artisticamente. “É uma figura muito controversa de se contar quem foi. No meu olhar, era uma figura que vendia muito jornal. A gente tem que olhar também que naquela época os jornais eram somente de pessoas brancas de classe média, tem esse contexto. A gente tinha um Brasil em que ser LGBT era crime, ser artista era crime, ser capoeirista era crime e ser preto era, no mínimo, problemático”, afirma. Madame Satã e Ilha Grande Moradores no túmulo de Madame Satã Reprodução/Mayron Carvalho De Souza Madame Satã passou 27 anos e 8 meses preso, de forma intercalada, entre 1928 e 1965 — boa parte desse período em um presídio na Ilha Grande, onde escolheu viver os últimos anos de sua vida. “Ele vem para Ilha Grande sendo malandro e não ia deixar de ser. Ele faz amizade com o pessoal de poder e passa a ser cozinheiro, vira amigo das pessoas influentes e passa a ser querido. Quando ele sai da cadeia, a Lapa não é mais a mesma e ele decide adotar Ilha Grande como seu lugar”, conta o pesquisador. No local, ele já mantinha laços de amizade e passou a participar do carnaval da Vila Abraão. “Ela continua a persona Madame Satã, continua sendo uma pessoa de carnaval, de se travestir com trajes femininos. Continua com a malandragem, mas muito mais como um contador de história de seu tempo do que realmente uma pessoa que brigava." Na memória dos moradores, o que permanece é a lembrança da amizade de Madame Satã. Para Baltazar, contar essa história sob uma nova perspectiva representa uma celebração de axé. “Eu acredito no axé e que as coisas acontecem quando têm que acontecer. Tudo isso está acontecendo porque Madame Satã permitiu. A presença dele é muito viva no local. Os caminhos se abriram para que essa história seja contada.” O pesquisador Baltazar de Almeida Arquivo pessoal